sexta-feira, 12 de abril de 2013

A Família, o Metrô e Privada, pra que te quero?


Nosso segundo dia no país da Muralha começou mais uma vez cedo por causa do fuso horário. Nos levantamos às 5 da manhã, mas eu já estava acordada desde as 3, rolando de um lado para o outro da cama enquanto tentava voltar a dormir. 

Café da manhã tomado, Nai Nai acordada, saímos um pouco antes das 8 para visitar Ar Gu, uma das tias do John.

Aqui talvez seja hora de acrescentar uma informação sobre os nomes dos parentes que citarei durante este diário de bordo. Nenhum dos nomes que uso são os nomes de verdade das pessoas, mas sim os tratamentos pelos quais o John as chama. "Nai Nai", por exemplo, significa avó paterna, e "Ar Gu" é a segunda tia (por ordem de nascimento) paterna. Perguntei para o John os nomes reais delas, mas ele não soube ou não quis responder, então usarei estes tratamentos aqui também.

Pegamos então o ônibus com a Nai Nai até a casa da Ar Gu. Ar Gu é divorciada e mora com o filho, a nora e o neto de um pouco mais de um ano. Chegamos, "olá, como vai? prazer, obrigada" e Ar Gu me traz um copo do que John traduz como sendo leite de coco, mas que na verdade era leite de um tipo de noz, e que tem um gosto perdido entre leite desnatado com água e desentupidor de pia. Após me arrepender amargamente de terminar o primeiro copo rápido para que o gosto terminasse logo e vê-lo ser reenchido sem que eu pudesse fazer nada para impedir a tragédia, o telefone toca. Ma (a mãe do John) ligando para avisar que está chegando ao apartamento da Nai Nai.

Toca uma corrida com direito a carona do Ar Ge (lê-se Ar Gã, e é o primo do John) para que Ma não chegue antes da gente e fique fechada para fora, no frio. Tudo dá certo e o almoço chega e se vai sem grandes acontecimentos. Para acertar nosso relógio interno, tiramos um cochilo à tarde, do qual acordamos sofregamente por volta das 5.

Hora então de sair novamente e ir visitar a Da Gu (a primeira tia). Esta é casada, mas, assim como Ar Gu, também mora com o filho, a nora e o neto. Parece ser um costume muito comum por aqui, talvez devido à política de filho único, que os filhos homens continuem a morar com a mãe mesmo depois de adultos, vacinados, casados e com filho. Olá, prazer, como vai, obrigada, chá, presente e tanto a visita quanto nosso segundo dia em Beijing chega ao fim. 

O dia seguinte começa Da Ge (filho da Da Gu, e, assim como Ar Ge, também se lê Da Gã) vindo bem cedo nos buscar para irmos visitar o túmulo do Ye Ye, o avô do John que morreu há uns 3 anos. Embora a situação peça melancolia, não posso evitar de ficar agitada com todas as coisas para ver no caminho entre o apartamento da Nai Nai e o cemitério. Aprendo a ler em chinês os símbolos para "Beijing", e fico parecendo uma criança recém alfabetizada. "Olha lá, John! 'Bei Jing'! Olha, ali de novo!". 

Chegando ao cemitério, fico boquiaberta. O local é nada mais, nada menos, do que uma montanha. Ok, talvez seja mais correto chamar de "morro". Mas, de qualquer forma, os túmulos cheios de flores coloridas se espalham por praticamente toda a extensão da montanha/morro/o que seja. Não consegui tirar muitas fotos porque John disse que os guardas provavelmente viriam reclamar, por ser falta de respeito com os mortos. As poucas fotos que consegui foram quando John e Da Ge não estavam olhando, mas de qualquer forma minha internet limitada não vai me permitir postá-las aqui até chegar na África do Sul.

No caminho até o túmulo do Ye Ye, não posso deixar de notar que vários dos outros túmulos possuem, além das flores, também bebida, comida e dinheiro deixados pelos familiares. Como tenho um tio messiânico a quem me acostumei a ver ofertar comida aos antepassados, este costume não me pareceu estranho, mas acho que jamais deixará de ser um tanto curioso. A crença chinesa diz que os mortos vão para o mundo inferior - que, ao contrário do que o nome pode levar a crer, não é como o inferno católico, mas simplesmente o "outro lado" da vida (apesar de em sua maioria ateus, chineses ainda carregam muitas crenças das religiões antigas) - e que este mundo inferior tem alguns pontos de "conexão" com a terra dos vivos. Um destes pontos de conexão é o cemitério, e isso explica o ritual que se seguiu.

Ao chegar ao túmulo do Ye Ye, John e Da Ge colocam flores e jogam pinga chinesa ao redor da lápide. Então nos ajoelhamos e os dois conversam com o avô (conversa da qual mais uma vez fui deixada de fora, por ser em chinês). John me apresenta e eu fico meio sem saber o que fazer ou dizer, então acabo ficando quieta, mesmo. Voltamos então ao carro, onde Da Ge pega uma sacola onde há pedaços de papel, caixinhas douradas de papelão e o mesmo dinheiro que eu havia visto antes sobre os túmulos - vale abrir um espaço para dizer que nas notas estava escrito "Hellbank Note" e o valor era "6666", tive que me segurar para não rir alto quando vi. Vamos até um grande forno com várias portinhas logo ao lado das lápides, Da Ge escolhe uma das portinhas, pega um pouco dos pedaços de papel da sacola e acende uma fogueira. Aos poucos, queimamos o dinheiro e as caixinhas douradas (que, vim a descobrir, representam ouro). A idéia é bem o que parece: enviar dinheiro e ouro para que o ente querido possa usar no tal mundo inferior.

Voltamos para casa e encontramos Ma pronta para nos levar para sair. Só temos tempo de usar o banheiro e tomar uma água antes de sairmos porta afora para pegar um ônibus até o metrô.

Sim, o metrô de Beijing. Me chamem do que for, mas se tem uma coisa que eu realmente gosto de fazer quando viajo é pegar transporte público no lugar. Acho que só assim me sinto realmente parte dali, sabem? E eu estava particularmente ansiosa para conhecer o metrô de uma cidade tamanho monstro como Beijing.

O mapa das linhas não chega a ser assustador como o de Londres, mas com certeza deixa o de São Paulo no chinelo. A estrutura é simples: um metrô circular no centro da cidade, outro que não chega a fechar o círculo um pouco mais distante, e várias linhas cruzando estes dois primeiros. Outra coisa é que chineses são muito ligados à idéia de Norte e Sul, Leste e Oeste, então as linhas são sempre apontadas para uma destas direções. 

Vamos então até o centro da cidade, onde Ma precisa ir ao banco resolver um problema que se revelou uma verdadeira novela com uma conta antiga do John. A agência fica bem na área das Embaixadas, então me divirto tentando descobrir de qual país cada Embaixada é. Na volta, passamos no apartamento deles, que está vazio desde que o último inquilino saiu, há cerca de um mês. John tem um longo momento de nostalgia, me mostrando o local onde ele caiu de cabeça no aquecedor quando tinha 5 anos de idade e a janela de onde ele costumava cuspir na cabeça de quem passava.

Paramos para almoçar em um restaurante ali perto e eu tenho meu primeiro susto. É um restaurante relativamente "chique" (apesar de que, segundo o John, restaurantes aqui adoram ser enfeitados e metidos a "chique"), nós entramos, escolhemos uma mesa, nos sentamos e eu me levanto para ir ao banheiro. Ao abrir a porta, no entanto, me deparo com uma daquelas coisas que eu imaginava que só existissem em áreas mais pobres e remotas do mundo: a privada é um buraco no chão. De porcelana, com descarga e tudo, mas com apoio para os pés ao invés de assento. Tenho um minuto de desespero no qual finalmente descubro o limite da minha tolerância e capacidade de me adaptar a diferentes culturas, antes de perceber que na cabine ao lado tinha uma privada de verdade e suspirar aliviada.

Sobre banheiros eu não me alongarei agora. Deixo isso para um post futuro que estou planejando, com um resumo das minhas impressões sobre a China. Sobre comida, caso estejam sentido falta deste aspecto, também não se preocupem: não falarei muito sobre isso nos meus relatos "diários" porque são coisas que merecem um capítulo à parte. Assim como o trânsito e a forma chinesa de dirigir.

Almoço terminado, hora de pegar mais um ônibus até um estúdio fotográfico onde Ma tinha orçado para fazermos algo parecido com um álbum de casamento. Mas como estava muito frio naqueles dias, a Nai Nai não tem secador e a gente estava passando o dia inteiro fora, voltando já na hora de dormir, eu não havia lavado o cabelo desde que cheguei aqui e John precisava cortar as madeixas, então paramos em um salão de beleza próximo ao estúdio.

Ah, o sonho… O paraíso… Para quem não sabe, eu sou do tipo de pessoa que odeia tanto salão de beleza que até aprendi a cortar e pintar meu cabelo sozinha para poder ir o mínimo possível a um. Detesto as revistas de fofoca, a conversa sobre o que está acontecendo na novela, no BBB ou com aquela celebridade que acabou de se separar. Mas, confesso, gosto da idéia de ter um profissional que sabe o que faz mexendo no meu cabelo, só para variar. Portanto conseguem imaginar qual não foi minha felicidade ao entrar em um salão de beleza em que eu não entendia uma palavra sequer do que era dito ao meu redor? Fiquei lá, feliz da vida, quietinha no meu canto sem ser tomada como metida ou fresca por não conversar, só curtindo o vento do secador no cabelo.

Ainda sobre cabeleireiros, eu tenho uma vantagem sobre a maior parte das pessoas nesses lugares: tiro meus óculos e consigo ficar completamente alheia ao que se passa ao meu redor. No caso de salão de beleza no centro de Beijing, isso significou ignorar todos os olhares curiosos, agitados e levemente perplexos daqueles vários pares de olhinhos puxados e cabelos pretos em volta. Apenas quando terminei e pus os óculos novamente é que eu fui reparar que absolutamente todos os olhos estavam parados em mim, a maioria acompanhados de risos e perguntas sobre mim para a Ma. Uma verdadeira celebridade, só que não. 

Também tive um pouquinho de pena do cabeleireiro responsável por secar meu cabelo (e fazer uma escova que me deixou com cara de quem acabou de saltar diretamente de um filme dos anos 70). Meu cabelo é ondulado e bem fininho, completamente diferente do grosso e liso escorrido cabelo chinês ao qual ele está acostumado. Mesmo sem meus óculos, pude vê-lo lutando com o secador para que meu cabelo não voasse da escova enquanto ele o secava.

Acabamos não tirando as tais fotos de casamento neste dia porque o fotógrafo disse que pela hora (eram 2 da tarde), nós ficaríamos muito cansados e isso iria aparecer nas fotos. O que, baseado em nossa experiência alguns dias depois, quando as fotos foram enfim tiradas, é totalmente verdade.

Fomos então passear no shopping do outro lado da rua, procurando calças para o John. Experimenta daqui, faz barra dali, compra cinto e subimos 6 lances de escadas rolantes para tomar um café. Ma fica para trás para ir ao banheiro. Quando ela finalmente nos encontra, traz a novidade: quer comprar um vestido daqueles tradicionais chineses para mim. 

Vamos então brincar de experimentar vestidos - novamente, coisa que eu não faço com muita freqüência. Um vestido mais lindo que o outro, acabamos levando dois por não sabermos decidir. Mas aí - culpo essa mania de papel de gênero da sociedade - é claro que preciso de um par de sapatos para os vestidos. Consumismo desenfreado em plena terra de Mao Tsé Tung, que por fim acaba não se cumprindo pois meus pés tamanho 37 aparentemente são grandes demais para os modelos que eu gosto na terra dos pés de lótus.

Voltamos então para casa, pegando ônibus, metrô e andando mais um tanto suficiente para nos fazer cairmos na cama antes das 9:30 da noite, encerrando assim o nosso feliz e produtivo terceiro dia no outro lado do mundo.

Obs.: Novamente quem está postando aqui é a Mari, portanto não dá pra Tati nos atualizar com tanta frequência assim dos relatos da viagem, mas ela disse que logo logo manda mais alguns e assim que tiver na África do Sul, ela volta. 

domingo, 7 de abril de 2013

A viagem, o Wu Mart e a notória discrição chinesa


Atenção: Esse post está sendo publicado pela queridíssima irmã mais nova da Tati. Aparentemente ela não consegue acessar o blog lá da China, então me encarregou dessa tarefa honrosa. Com vocês, mais um capítulo do diário de bordo de alguém que está "perdida na China": 
P.s.: Ela não conseguiu enviar fotos ainda, quando tiver acesso a uma internet melhor prometeu colocar algumas.
O mais novo capítulo do meu diário de bordo começa, como não poderia deixar de ser, com a viagem. Passagens compradas há meses, ansiedade crescendo na garganta, malas feitas e lá vamos nós encarar 8 horas de viagem até Johanesburgo, onde esperaríamos por mais 9 pelo vôo de 14 até Beijing, China. 

O primeiro trecho da viagem foi tranqüilo. Avião praticamente vazio e, graças à sabedoria e brilhantismo do John - que me pediu para acrescentar este adendo -, conseguimos uma fileira de 3 poltronas para cada um. Deitadinhos, razoavelmente confortáveis, as primeiras 8 horas da viagem se passaram sem nenhum tipo de trauma - para me garantir, tomei um Dramin antes de embarcar.

Começam então as longas 9 horas de espera em Johanesburgo. Tempo mais do que suficiente para decorarmos toda a área de embarque do aeroporto - momento em que agradeço pelo fato dele não ser pequeno e vergonhosamente velho como o nosso querido Internacional de Guarulhos. Tempo para, inclusive, tirarmos mais uma soneca nas poltronas por lá antes de, enfim, embarcar em um avião com mais chineses do que a Liberdade em dia de festa.

Mais longas 14 horas - em que ainda tivemos a sorte de conseguir uma fileira de duas poltronas para cada - e finalmente chegamos em Beijing. Já do ar me assusto com o tamanho do aeroporto, muito bonito em sua arquitetura. Com visto nos passaportes, passamos rapidamente pela alfândega e nos dirigimos ao trem que nos levará até as esteiras de bagagem.

Sim, eu disse trem. Em uma cidade assombrosamente grande como Beijing - dizem que, entre habitantes fixos e os rotativos, aqueles que vêm à capital para trabalhar por um período e depois voltam para suas cidades, o número chega a 25 milhões de pessoas -, o aeroporto precisa de um trem para que os passageiros cheguem de um ponto a outro. 

Bagagem recolhida, nos dirigimos à saída. Lá fora nos espera Nai Nai, a avó do John, junto com o fiel motorista de táxi que nos levaria através da cidade até seu apartamento. Aproveito o trajeto, durante o qual os três não param de conversar - em chinês, obviamente - para observar Beijing às 8:30 da noite.

O que consegui ver - lembrem-se de que enquanto escrevo isso, não faz nem dois dias que cheguei e ainda não fomos explorar mais a fundo a cidade - é que Beijing, apesar de muito maior do que São Paulo, é bastante mais espalhada do que nossa metrópole, o que a faz ser dividida em "setores" menores. Também - informação do John - não é muito comum que as pessoas aqui morem em um lado da cidade e trabalhem em outro. Há também pedágios no meio da cidade - lembra, aquele que estão pensando em implantar em São Paulo? -, mas eu acredito que o preço não seja absurdo.

Com as 11 horas de diferença para o Brasil, acordamos no dias seguinte às 6:30 da manhã, já animados para sair à rua. Muitas camadas de roupa depois - aqui é primavera, mas ainda está bem friozinho -, saímos John, Nai Nai e eu para esperar o ônibus.

Enquanto esperamos, Nai Nai se distancia. "Onde ela vai?", pergunto ao John, mas ele sabe tanto quanto eu. Ela se encaminha até um cavalete da construção em frente e John e eu assistimos, em um misto de embasbacamento e vergonha de nós mesmos, enquanto aquela velhinha de 80 anos que parece saída de uma lojinha de bonecas de porcelana chinesas apóia a perna no cavalete com quase a mesma altura dela e, sem cerimônia, começa a se alongar.

Alongamento matinal terminado, o ônibus chega e nós três embarcamos. John passa o "bilhete único", que cobra 40 centavos de Yuan de cada um. Sim, 40 centavos. De Yuan, lembrando, que custa cerca de R$0,33 cada. Ou seja, uma passagem de ônibus em uma cidade com uma população maior do que a de São Paulo custa por volta de R$0,15. Me dá uma vergonha absurda lembrar dos R$3,30 que eu pagava em Campinas.

Um ônibus cheio de chineses, então, levanta seus olhinhos puxados para mim. Respiro fundo e tento me acostumar com a sensação, pois quanto mais ao sul viajarmos, maior é a tendência da minha pele branca, cabelo ruivo e olhos azuis chamarem a atenção. Me sento por alguns minutos, até um senhorzinho entrar no ônibus e eu ceder meu lugar a ele. "Fank you", ele diz, todo orgulhoso de si mesmo por ter finalmente usado o pouco inglês que aprendeu durante os Jogos Olímpicos.

Descemos do ônibus em uma espécie de galeria/shopping e vamos fazer compras em um supermercado chamado Wu Mart. Após eu rir muito, tanto do trocadilho com Wal Mart quanto pelo fato do sobrenome do John ser Wu, tenho finalmente o primeiro grande choque que me faz perceber que estou em um país totalmente diferente de tudo o que conheço. 

Produtos coloridos, brilhantes, em embalagens e rótulos que não me permitem ter a mínima idéia do que de fato são. Vejo um pacote de algo que se parece muito com adubo, mas que na verdade é farinha, ao lado de algo que lembra um pacote de velas, mas na verdade é macarrão. Frutas geneticamente modificadas de tamanhos assustadores, ao lado de verduras que nunca vi antes. Pães, biscoitos e bolos de cores estranhas e ingredientes ainda mais esquisitos na seção de padaria. E ali, logo ao lado, a mais peculiar de todas as coisas neste Wu Mart, que merece um parágrafo próprio.

Entre a padaria e o hortifruti, um quiosque parecido com uma seção de frios em qualquer mercado brasileiro. Exceto que, ao invés de queijos, presunto e salame, há patos assados na geladeira. E, em uma parte de self-service, vários ingredientes selecionados e picados estão ali, prontos para que o cliente os escolha. John pega um saquinho e o enche com diferentes ingredientes - fruta de lótus, cogumelos variados, carne de porco processada, verduras cujos nomes não faço a mínima idéia de quais são. Ele entrega o saquinho, então, para a mulher atrás do balcão, que, sorridente, começa a misturar vários molhos à escolha da Nai Nai. Terminado o serviço, ela amarra o saquinho e uma parte do nosso almoço está ali, prontinha.

Durante este tempo, é claro, vários pares de olhos puxados não paravam de, discretamente ou não, olhar para mim. Após quase causar um acidente com a moça que recarregava as pêras por causa disso, terminamos as compras e fomos esperar no caixa. No caminho pensei em comprar um creme para a pele, mas desisti ao chegar na seção de cosméticos e lembrar que eu não falo - e muito menos leio - chinês.

Saindo do mercado, ouço duas mulheres falando algo sobre mim. Bom, eu sabia que era sobre mim porque, como mencionei acima, nem sempre chineses são discretos. Na verdade, muitas vezes eles são exatamente o oposto; ainda terei oportunidade, espero, de passar e contar por mais situações engraçadas a este respeito. Mas, enfim, fato é que as duas mulheres falaram algo e John começou a rir alto. "O que foi?", pergunto. "Elas estavam falando: 'olha só, que branquinha, que cabelo vermelho… dá vontade de levar para a casa para ser nossa nora, né?'". 

Voltamos para casa assistir TV e esperar a hora do almoço. John vai fazer uns omeletes e me deixa sozinho com a Nai Nai. 

Entendam: Nai Nai é uma velhinha muito bonitinha, do tipo que muita gente gostaria de colocar em um potinho e guardar na prateleira. Mas ela também acredita que, se continuar falando chinês comigo insistentemente, eu vou magicamente começar a entender. Sabem, sem nem fazer gestos para me dar uma dica de sobre o que ela está falando. John me ensinou meia dúzia de palavras básicas, o que não me deixa perdida quando preciso dizer "oi", "comida gostosa" e "obrigada", mas entre isso e entender tudo o que eles dizem há um abismo enorme.

Após o almoço, John e eu voltamos à mesma galeria/shopping onde o supermercado fica, para explorar mais. Damos uma olhada em algumas lojas e tal, até entrarmos em um andar que era a mistura perfeita entre os Xing Ling da Avenida Paulista e o paraíso na Terra.

Várias lojinhas se espalhavam sem fim por dois andares, com os itens mais variados e curiosos e interessantes que eu já vi. Minha criança interior dava pulinhos de alegria, enquanto minha parte adulta e responsável tomava nota mental de tudo o que havia ali para voltar futuramente e fazer compras. 

Havia também várias dessas lojinhas com manicures express, daquelas que têm até maquininha para imprimir na unha. Acho que vou voltar lá mais tarde, só para experimentar. Uma dessas lojinhas de manicures, aliás, me deu mais uma demonstração da já notória discrição dos chineses: três mulheres estavam sentadas, desocupadas, conversando sobre a vida e rindo. Uma delas, então, me notou. Imediatamente, as três pararam de conversar e ficaram me observando como se eu fosse o elo perdido entre um ET e a celebridade mais famosa do mundo, e me seguiram com os olhos durante todo o meu trajeto em frente à loja delas.

Antes de voltar para casa, passamos em um McDonald's porque, admito, eu estava curiosa para saber o que servem em um McDonald's na China. De forma geral, os hambúrgueres pareceram bem semelhantes aos do Brasil, mas minha opinião também pode ser baseada no fato de que não leio chinês e os cartazes, obviamente, não estavam em inglês. De repente aquele símbolo que eu jurei que significava "Big Mac" na verdade quer dizer "carne de cachorro", mas pelo menos as fotos eram bem normais. A única coisa que me chamou a atenção, na verdade, foi o fato de que os combros incluem o hambúrguer, batata frita, refrigerante e uma porção de frango frito. É. Ao estilo KFC, para quem conhece. Chineses aparentemente gostam muito de frango frito.

A saga do nosso primeiro dia em Beijing termina de forma menos excitante do que muitos poderiam esperar. Devido à diferença de 11 horas no fuso e ao fato de que havíamos acordado às 6:30 da manhã, resolvemos deitar para tirar um cochilo de meia hora às 6 da tarde. Acordamos às 5 da manhã, prontos para o nosso segundo dia. 

sexta-feira, 8 de março de 2013

"Se tem Dia da Mulher, por que não tem Dia do Homem?"

8 de março, Dia Internacional da Mulher. Também conhecido como "o dia de receber uma enxurrada de baboseiras machistas disfarçadas de 'carinho' ou 'piada'". 

De propagandas de produtos de limpeza mostrando um homem sarado e seminu oferecendo "ajuda" com as tarefas domésticas àquelas cansativas mensagens de "mulher, mãe, filha, dona de casa, profissional, puta, santa, etc, etc", seja nas redes sociais pela internet, seja no trabalho, seja na TV, a verdadeira razão de existir deste dia parece ter sido esquecida há muito.

Entre tudo o que já ouvi e vi nos 24 Dias da Mulher que passei, a maior de todas as bobagens é a fatídica pergunta "Mas se tem Dia da Mulher, por que não tem Dia do Homem?".

Pela mesma razão pela qual temos Dia das Crianças, mas não Dia dos Adultos.
Por que temos Dia da Consciência Negra, mas não da Consciência Branca.
Por que temos Dia do Orgulho Gay, mas não - apesar de tentativas da bancada homofóbica - Dia do Orgulho Hétero.
Por que temos Dia do Índio, mas não Dia do Colonizador Português.

E por aí vai. Imagino que você já tenha entendido a lógica.

Não existe Dia do Homem* - ou dos adultos, ou dos brancos, dos héteros, dos colonizadores portugueses - porque o salário de um homem exercendo a mesma função de uma mulher continua sendo mais alto. 
Porque ainda se diz que homens devem "ajudar" no serviço doméstico, quando o mesmo não deveria mais ser considerado responsabilidade da mulher que trabalha tanto quanto seu marido.
Porque homens não sabem - nem sonham - o que é ter medo de sair às ruas com determinada roupa ou a determinado horário ou de ficar sozinha com uma mulher ou de ir a uma festa e beber demais e correr o risco de que alguém se ache no direito de estuprá-lo pelo simples fato de ser homem.
Porque quantos são os homens assassinados por suas parceiras todos os anos pelo motivo de por elas serem considerados propriedade?
Quantos homens já foram espancados por um grupo de mulheres enquanto esperava o ônibus para o trabalho às 5 da manhã porque elas pensaram "que ele era um prostituto"?

Então, não. No próximo dia 8 de março, não me venha com flores ou chocolates ou piadinhas. Tampouco me eleve à categoria de semi-deusa por "ser dona-de-casa e profissional". Me respeite. Não me estupre. Não me trate como propriedade. Entenda que nossa casa e nossos filhos são "nossos", e que você não está "me ajudando" ao assumir estas responsabilidades, está sim fazendo sua obrigação.

Aí sim, quem sabe, a gente possa criar um Dia do Homem só para você.

*Obs.: Quando digo "homem" neste post, me refiro a homens cis heterossexuais.

domingo, 6 de janeiro de 2013

O Dia em Que Fiquei Famosa (só que não)

Era ontem, dia 5 de janeiro de 2013. Eu me dedicava à minha tarefa de organizar as caixas e malas que trouxe da minha casa em Campinas - estamos de mudança, lembram? - para a casa dos meus pais. Parei por alguns minutos para dar um banho em Tobi e Kiara, os cachorros. Aí o telefone toca.

"Tati, você conhece alguma Gentila?", Mari, a irmã, me pergunta. Conheço, sim. Foi minha professora de História na quinta série. O que não explica por que ela estaria no telefone, querendo falar comigo. Não venha me dizer que resolveu alterar a nota naquele trabalho que fiz e me permitiu passar de ano, treze anos atrás. Atendo o telefone.

"Olá, Tatiana. Aqui é a Gentila, do museu." Bom, duas informações que posso tirar disso: 1) ela não faz idéia de que foi minha professora e 2) em cidade pequena ninguém diz os nomes dos lugares, é sempre "o museu", "a igreja", etc.

"Você conhece a Rádio Comunidade?" Erm… Não. Mas eu também não moro aqui e não ouço rádio, então não é um grande problema. "Nós temos esse programa chamado 'A Hora da Carochinha', no qual entrevistamos poetas locais".  Oi? Será que eu entendi direito?

"Eu gostei muito da poesia que você mandou para o Concurso Gustavo Teixeira e, mesmo sem você ter sido selecionada para a final, eu gostaria de convidar você para participar de uma entrevista amanhã".

Pausa para explicações: Gustavo Teixeira foi um poeta nascido em São Pedro. Não exatamente famoso fora daqui, mas eu honestamente gosto das poesias dele. E todos os anos há o grande Concurso Gustavo Teixeira, que premia poesias inéditas e também interpretações das poesias dele. Eu ganhei primeiro lugar há alguns anos e este ano me inscrevi novamente, mas não fui selecionada.

Pausa na ligação para eu assimilar as informações. Estou sendo convidada a dar uma entrevista numa rádio por causa de uma poesia minha. Segurando minha criança interna, que neste momento está dando pulinhos e gritinhos de alegria, aceito o convite.


E hoje fui dar a entrevista. Bastante interessante, o entrevistador é um diretor de teatro da cidade (de quem eu nunca tinha ouvido falar, mas novamente, eu não moro aqui), bem simpático e que soube conduzir a entrevista de uma forma que não fiquei (muito) nervosa. Até consegui ler minha poesia em voz alta - coisa que sempre me deixa extremamente nervosa.

Infelizmente, esqueci de perguntar para minha professora de História da quinta série qual era a freqüência da rádio, então ninguém ouviu. Mas Mari, a irmã, ficou dentro do estúdio durante a entrevista e a gravou de lá, assim que eu tiver a entrevista em mãos faço um update com o áudio.

Portante hoje foi o dia em que fiquei famosa. Só que não.

Ah, sim. Para quem se interessar, aqui vai a poesia que me rendeu uma entrevista:

Não chorou no enterro da mãe  
Era um menino bonzinho,
"Um anjo", diziam as avós
Mas não chorou no enterro da mãe.
Olhou o caixão, e lá dentro o defunto que o gerara
Mas nem uma lágrima soltou. 
Era um menino de talento,
Tinha tudo que um menino quer
Tinha casa, comida, brinquedos
E tinha a mãe, mas esta não tem mais
A mãe-defunta que dorme com os mortos
A mãe-cadáver que estava no caixão
Que o menino viu e não chorou. 
De não chorar, o menino calou
E ninguém mais o viu sorrir.
Mas ninguém se importava; valia apenas
Que o menino não chorou no enterro da mãe. 
E não chorou, o menino, porque não sabia chorar
Ninguém nunca o ensinara
- Mas chorar lá é coisa que se ensine?
E não chorou no enterro da mãe. 
O nome do menino nem ele se lembrava
Não mais o chamavam; ele era apenas
O garoto que não chorou no enterro da mãe. 
Até o dia em que o menino gritou,
E gritou apenas porque ainda não sabia chorar,
Gritou até que todos o ouvissem
E o expulsassem de casa por gritar; afinal
Ele não chorou no enterro da mãe. 
O menino gritou correndo pelas ruas,
As pessoas fechavam a janela,
E o menino gritou até não conseguir mais. 
O menino entrou na igreja,
Lá viu suas avós. "Um anjo", elas diziam.
E subiu no altar e despiu a Virgem Maria
Sem tirar-lhe o véu.
As pessoas o acusaram. O menino
Não chorou no enterro da mãe. 
Morreu assim, ninguém sabe como
Nem importa saber.
Mas não chorou quando morreu
E nunca aprendeu a chorar.
E não chorou no enterro da mãe.
Update: Abaixo, o áudio da entrevista.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Quem é vivo (quase) sempre aparece

Hora de espanar a poeira, dar uma varrida no chão, abrir as cortinas e tirar as teias dos cantos da parede.  Da última vez em que escrevi neste blog eu ainda tinha 23 anos, era solteira e Oscar Niemeyer estava vivo.

Pois é. Muitas coisas mudaram nestes quase cinco meses de ausência. A primeira - e mais óbvia - é que completei 24 anos de vida. A segunda é que me casei. A terceira, mas não menos importante, é que estou de mudança e não sabemos para onde.

Como já comentei neste blog (já, mesmo? não sei... são tantos blogs que me confundo...), tenho no fundo um espírito meio cigano que não me deixa ficar quieta em um lugar só. O "para sempre" me assusta e me dá vontade de mudar. Tenho medo da rotina.

Aí vocês me perguntam "Mas se você é assim, como é que foi se casar?". A isto eu me reservo o direito de dar uma risadinha tímida e dizer o clichê do "Estava escrito". Ou algum outro do tipo.

Mais novidades: em março ou abril, viajaremos - John e eu - para a China e, mais uma vez, para a África do Sul. A China é para que ele possa me apresentar para o resto da família - tios, tias, primos, avós. Já a África do Sul é para que ele possa visitar os pais, oras. Prevejo Diário de Bordo. Ou não, já que a internet na China é um bocado limitada.

Minha intenção é voltar em breve. Talvez fale um pouco sobre o casamento e a vida de casada, mas não prometo. Cansei de prometer o que acabo não cumprindo. Este foi, portanto, apenas um post para lembrar que estou, sim, viva e que o blog não está encerrado.


sábado, 4 de agosto de 2012

Um Dia de Gato

Foi num dia desses que acordei transformada em gato. Confesso que demorei, envolta ainda no meu próprio sono, a me perceber com quatro patas. Apenas quando estiquei aquelas que costumavam ser minhas mãos foi que notei algo estranho. Todo aquele pêlo marrom cobrindo meus braços… Aquilo não era normal.

Fechei os olhos novamente e esfreguei preguiçosamente os olhos. Já chega de sonhar, eu disse para mim mesma enquanto bocejava, é hora de acordar. Afastei os cobertores e me pus em pé ao lado da cama. Quando minhas antigas mãos tocaram o chão de forma natural, finalmente percebi que não estava sonhando.

Estranhamente calma, caminhei sobre minhas quatro patas almofadadas até o espelho do meu quarto. Um grande gato siamês de olhos azuis olhou de volta para mim. Senti um arrepio percorrer toda a minha nuca e descer por minhas patas enquanto um leve rugido saía da minha boca antes que eu conseguisse entender que aquele outro gato era na verdade eu mesma.

Um gato bastante bonito, devo admitir. Charmoso, elegante… Um verdadeiro membro da realeza. Olhei para baixo, para minhas novas patas, a fim de examiná-las. Garras afiadíssimas se escondiam em meus dedos, e tive a repentina sensação de ser uma máquina mortífera ambulante. Olhando novamente para o espelho, observei o resto do meu corpo. Uma espessa e ágil cauda erguia-se acima do meu corpo. Testei seus movimentos e me peguei pensando como poderia ter vivido tantos anos sem uma cauda.

De repente, um zunido. Minhas orelhas se movimentavam sem que eu tivesse realmente controle sobre elas, virando-se como radares em busca de um sinal. Então eu a vi. Uma mosca. A mais gorda, monstruosa, nojenta e apetitosa mosca que já havia visto. Imediatamente, pus-me de guarda. Abaixei-me sobre minhas patas, com minha cauda tremendo nervosamente de um lado para o outro. Ouvi barulhos estranhos escapando da minha boca, mas não dei muita atenção. Meus olhos atentos acompanhavam cada movimento de minha presa. Alheia às minhas intenções, a mosca voou ao redor de minha cabeça e se preparou para aquele que seria o último pouso de sua breve vida. Antes que eu pudesse muito bem saber o que havia acontecido, minhas patas se fecharam sobre suas asas e no instante seguinte ela descia pela minha garganta.

Eu havia comido uma mosca. Esse pensamento se apoderou de minha cabeça. Eu comera uma mosca nojenta, e sabe-se lá onde ela havia estado antes de parar no meu estômago. Por alguns momentos pensei que fosse vomitar. Mas uma vontade súbita de ir ao banheiro se apoderou de minha mente, e de repente eu tinha assuntos mais importantes para tratar.

Como hábito, me dirigi ao banheiro. Após analisar, percebi que não conseguiria utilizar o vaso sanitário. Como é que gatos vão ao banheiro, mesmo? Ah, sim, pensei, é claro. Bamboleando graciosamente em minhas quatro patas, me dirigi ao quintal.

Usar o banheiro ao ar livre e sem medo de ser vista pelos vizinhos foi uma sensação libertadora. Mas enterrar aquilo que eu havia acabado de fazer, mesmo que os instintos de gato pulsando nas minhas veias tenham se encarregado disso, foi oficialmente estranho.

Senti então meu estômago reclamar de fome. Embora ainda pudesse sentir a mosca sendo digerida, ela não era nem de perto suficiente para me saciar. Voltei para dentro de casa, rumo à cozinha.

Claro que eu sabia que não conseguiria cozinhar, estando naquela forma. Tentei abrir a porta da geladeira, mas só então entendi o valor dos tais famosos polegares opositores. Um pouco frustrada, sentei no chão da cozinha e passei a lamber meu pêlo.

Levei alguns segundos para perceber que eu estava, de fato, lambendo meu próprio corpo. Interrompi meu "banho" por alguns instantes, sentindo minha língua áspera cheia de pêlos. Pela primeira vez naquele dia, parei para me perguntar como diabos eu havia acordado naquela forma e como faria para voltar ao normal. Antes que pudesse encontrar a solução, meu olfato detectou um aroma peculiar vindo de cima do balcão.

Olhando para cima, não acreditei que seria capaz de pular aquela altura. O balcão era no mínimo quatro vezes mais alto do que eu. Imaginar que eu pudesse ser capaz de ir parar lá em cima com apenas um pulo era como me imaginar em minha forma original pulando para o telhado de uma casa.

Meu corpo felino, no entanto, parecia pensar diferente. Minhas patas traseiras se arquearam, enquanto minha cauda voltava a balançar. Sem saber exatamente o porquê, dei uma reboladinha. No momento seguinte, eu estava sobre o balcão.

Restos de uma deliciosa galinha que eu havia comido na noite anterior estavam sobre um prato. Sem pensar duas vezes, me pus a devorá-la. Aquela galinha estava ainda mais deliciosa do que eu me lembrava, mas minha pequena boca de gato me obrigou a comê-la devagar.

Enfim saciada, pulei de volta ao chão. Havia sido um dia cheio, pensei, e eu precisava tirar um cochilo. Procurando pela casa, enfim encontrei o lugar perfeito: o sol entrava pela janela e batia no canto da sala, bem debaixo de uma samambaia que ficava pendurada na parede. Desabei meu corpo ali, voltando a lamber meu próprio pêlo. Quando enfim me senti limpa, caí no sono.

Acordei não sei quantas horas depois, quando já não batia sol no canto onde eu estava. Ao abrir os olhos preguiçosamente, me deparei com um rosto olhando para o meu. De um susto, me levantei, batendo minha cabeça no vaso da samambaia. Aquele rosto humano começou a rir. Olhei para minhas quatro patas, mas elas já não eram peludas. Dedos, unhas, polegares opositores… Estava tudo ali. Voltei a olhar para aquele rosto familiar e finalmente o reconheci.

- Não tinha lugar melhor para você cochilar, não? - disse meu marido. Respondi com um sorriso. Não, não tinha.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

O Gosto das Cores

Este post não é continuação do anterior. Nele não há Marcelas, nem tintas, nem pessoas que lambem tintas. Este post tampouco é um conto de ficção. Este é um post sobre como eu descobri que sou sinestésica.
si-nes-te-si-a
sf (sin+estesia) Med 1 Sensação secundária que acompanha uma percepção. 2 Sensação em um lugar, devida a um estímulo em outro. 3 Condição em que a impressão de um sentido é percebida como sensação de outro.
Sim, eu "sofro" de sinestesia. "Sofrer" entre aspas porque pesquisei muito desde que percebi que algo era diferente na forma como eu recebia estímulos através dos meus cinco sentidos, e nunca encontrei um único caso de um sinestésico que tivesse algum problema ou dificuldade devido a esta "sopa" sensorial.

Esse quadro é tão saboroso, não acham?
Há vários tipos de sinestesia. Na verdade, ela se apresenta de forma completamente diferente para cada pessoa. Há aqueles que vêem cores ou formas geométricas ao ouvirem certos sons ou músicas. Há aqueles para quem cada número ou letra possui uma cor ou som único. Existe gente que pode sentir cheiros ou gostos ao verem ou ouvirem determinadas imagens, cores, músicas.


Para quem nunca teve uma experiência sinestésica, é difícil explicar como eu pude demorar tanto tempo para perceber que era uma dessas pessoas. Mas a verdade é que na maioria dos casos essa mistura de sentidos ocorre de forma tão natural e desde tão cedo que muitas pessoas nem sequer param para pensar que algo nelas é diferente. E foi assim que aconteceu comigo.

Minha primeira experiência sinestésica deve ter ocorrido quando eu era muito nova. Como - repito - demorei para perceber que algo era diferente, não tenho uma memória exata de como funcionavam meus sentidos quando eu era criança. 

Foi apenas há mais ou menos uns 2 anos que finalmente me dei conta de ter algo "estranho" nos meus sentidos. Foi num dia em que me perdi no Youtube vendo vídeos de programas de quando eu era criança. Mais precisamente, foi quando vi este vídeo:


Este é o desenho Bojan, que passava no Glub Glub, na TV Cultura, quando eu era bem pequena. E quando o revi, fui invadida por sensações que há muito tempo não experimentava. No início não sabia muito bem o que era, e tive que rever o vídeo várias e várias vezes até identificá-las. O que eu estava sentindo era o gosto das cores.

Diferente dos sinestésicos mais "famosos", minhas experiências não são assim tão claras. Sinto o gosto das cores, mas não de uma forma tão concreta como alguns sinestésicos relatam. É como uma lembrança de um gosto, um gosto que eu sinto mas sei que não está na minha boca. Mais ou menos quando a gente lembra do gosto da macarronada de domingo que só a vovó sabe fazer, sabem?

Também diferente dos sinestésicos "famosos", os gostos que eu sinto não são tão bem definidos e não necessariamente se repetem com a mesma cor. Também não é em todos os momentos que os sinto. 

Além de gostos, já experimentei outras formas de sinestesia, embora estas ainda mais esparsas e difusas do que a minha sinestesia original. Já vi cores ao tatear meu quarto no escuro ou o interior da minha bolsa à procura de algum objeto perdido. Já senti cheiros que não estavam lá ao recordar de algum lugar ou momento da minha vida.

Azul tem um gosto muito bom.
A mais estranha - ou assustadora, ou maluca, escolha o adjetivo ao seu gosto - experiência sinestésica eu tive poucas noites atrás. Estava me preparando para dormir com o namorado. Tenho mania - talvez fale sobre isso qualquer dia desses - de esfregar meus dedos nos dedos dele antes de dormir. Luz apagada, fechei os olhos e peguei na mão dele. No mesmo momento fui inundada por todas as sensações possíveis. Pude ver no escuro a cor azul. Como se a mão dele e tudo o mais ao redor estivesse banhado por uma luz ou envolto em papel celofane azul. Lembrando: tudo estava escuro. Senti também o gosto daquela cor azul que eu via ao redor, de olhos fechados. E, bem levemente, fui capaz de sentir o cheiro azul que pintava tudo na minha mente.

Ainda não se sabe exatamente o que faz com que algumas pessoas sejam sinestésicas. Alguns cientistas acreditam que tenha origem genética. Outros dizem que é um defeito no cérebro que faz as áreas dos sentidos se misturarem. O que sei é que, defeito ou não, ser sinestésica faz com que eu me sinta quase uma Alice perdida no País das Maravilhas.

'But I don't want to go among mad people,' said Alice. 'Oh, you can't help that,' said the cat. 'We're all mad here.' (Lewis Carroll)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O Gosto do Azul

Marcela era uma menina comum. Gostava de brincar de pega-pega na rua com os amigos. Com suas bonecas, criava histórias fantásticas de monstros espaciais e aventuras submarinas. Brincava de casinha, também, quando lhe apetecia. Comia arroz, feijão, carne moída e batata frita como se fosse a melhor iguaria do mundo. Sujava os joelhos das calças e levava bronca dos pais quando fazia algo errado.

Mas quando Marcela tinha seis anos, começou a desconfiar que algo em si mesma era incomum. Foi numa aula de Artes na escola. Muitos anos depois, Marcela ainda poderia se lembrar das risadas das outras crianças quando alguém - não se lembraria quem - gritou: "A Marcela lambe as tintas!".

E foi assim que nasceu Marcela-Lambe-Tintas. No início a alcunha a incomodava; por vezes voltava para casa aos prantos. Com o tempo, porém, Marcela-Lambe-Tintas passou a aceitar o apelido, e até gostar dele. O fato é que bem tentara parar com o hábito, mas a tentação era grande demais. Quando um dia lhe perguntaram por que é que cultivava esta mania, respondeu simplesmente: "Porque gosto do sabor das cores". "Do sabor das tintas", a corrigiram. "Não", respondeu, "do sabor das cores".

O sabor do azul é o que Marcela-Lambe-Tintas mais gostava. Diferente do ácido amarelo ou do exageradamente doce cor-de-rosa, o azul tinha um gosto suave mas intenso que muito lhe agradava.

Um dia resolveram dizer a Marcela-Lambe-Tintas que ela já não podia mais continuar com o hábito que tanto gostava. "É uma moça agora", disseram, "não fica bem uma moça lamber tintas". 

Com muito esforço, Marcela-Lambe-Tintas parou de lamber tintas. As aulas de artes passaram a ser um martírio. Marcela - agora sem a alcunha - deixou de ser uma menina sorridente. A força que era obrigada a fazer para não cair em tentação a deixava exausta e Marcela não sentia mais prazer em muitas coisas na vida.

Talvez por isto o incidente que se seguiu deveria ter sido anunciado. Quando, já no colegial, a escola organizou uma excursão a um famoso museu de arte da cidade, Marcela sentiu o sinal de alerta dentro de si acender. Tentou argumentar com a professora, dizendo que não poderia participar do evento. "Bobagem", disse a professora, "Esta excursão é obrigatória para todos os alunos e valerá nota para o fim do semestre". 

Ao se ver cercada daquelas obras, tantas tintas de tantas cores diferentes, Marcela não resistiu. Quando foi encontrada pelos seguranças do museu lambendo um quadro de Monet, seus pais finalmente foram aconselhados a procurar um psicólogo. Marcela, é claro, nunca mais pôde pôr os pés em um museu.

Após uma série de psicólogos que tentaram - sem sucesso - curar o hábito de Marcela, seus pais decidiram levá-la a uma psicóloga que tinha a má-fama de usar métodos "alternativos" no tratamento de seus pacientes e que sugeriu a Marcela que ela comprasse telas e tintas e passasse, ela mesma, a pintar.

"Esta mulher está louca", disseram. Porém, ao verem Marcela se tornar cada dia mais calada e triste, enfim seus pais resolveram aceitar. Separaram um cômodo na casa para que ela pudesse se dedicar à atividade. Quando Marcela foi levada pela primeira vez a seu novo quarto, um novo brilho acendeu em seus olhos e lá ela ficou trancada por três dias e duas noites. Ao fim do terceiro dia, seus pais aflitos abriram a porta. Lá estava Marcela-Lambe-Tintas, com cores espalhadas dos pés à cabeça e um enorme sorriso no rosto. Ao seu lado, o primeiro de uma série de quadros que Marcela viria a pintar. E em sua língua, nem mesmo uma única mancha de tinta.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

A Menina e a Estrela

(O texto abaixo foi originalmente escrito em homenagem à minha avó, Maria Ignez Ribeiro, em meu antigo blog. Agora o "empresto" a um amigo que deixou o mundo mais vazio não numa manhã, mas sim em uma noite de domingo.)



O mundo ficou mais vazio naquela manhã de domingo. Uma estrela pulsante de brilho e calor se apagava. Do outro lado do mundo a garota dormia tranqüila em uma madrugada de segunda.
A estrela se apagou sem aviso nos jornais. Nenhum astrônomo poderia haver prevido, nenhum fenômeno celeste anunciava sua despedida. E, todas as estrelas ofuscadas pela luz do sol, a garota não pôde notar a ausência daquela estrela. Foi somente quando a noite se fez presente e as estrelas brilharam no céu escuro que ela notou. Aquela estrela, uma das mais brilhantes, havia se apagado.
As noites se tornaram mais escuras, uma após a outra. Nem mesmo os dias eram mais tão claros quanto costumavam ser. A ausência daquela estrela se fizera tão repentina que seus olhos não haviam tido tempo de se acostumar com a escuridão. E as noites eram frias, e mesmo o sol parecia sentir a falta da estrela que iluminava a noite.
No outro lado do mundo, a garota se sentia triste. Sentada no topo de uma montanha, observando o céu, agarrando-se na vã esperança de encontrar a estrela ainda ali, saindo de seu esconderijo e rindo, brincando de esconde.
Foi quando o sabiá pousou em seu ombro. A garota tentou espantá-lo, não queria ninguém a observá-la em sua tristeza. Mas ali ele permaneceu, como ela a olhar para o céu.
Uma lágrima então rolou de sua face. E outra a seguiu. E mais uma. E tantas lágrimas a seguiram que em pouco tempo o chão ao seu redor tornara-se um imenso espelho d’água. Solenemente, o sabiá desceu de seu ombro direito para o chão.
Ela sentiu seu coração se aquecer. Com um sorriso estancando as lágrimas, a garota encontrou o que procurava. Ali, no exato ponto em que o sabiá pousava, a estrela pulsava um brilho mais forte do que nunca.

domingo, 20 de maio de 2012

42

Artur Dente acordou naquela manhã com uma dorzinha chata do lado esquerdo da cabeça. Depois de rolar de um lado para o outro da cama por um bom tempo, decidiu parar de fingir para si mesmo que ainda estava dormindo e se levantar. Jogou as pernas para fora da cama, na esperança de que elas fossem sozinhas resolver os problemas daquele dia e deixá-lo hibernar. Ao enfim convencer-se de que não teria sucesso, enfiou os pés nos chinelos felpudos, vestiu a primeira peça de roupa que encontrou pela frente - um roupão verde-musgo jogado sobre a cadeira ao lado da cama - e se arrastou para o banheiro.

Ao se olhar no espelho, confirmou suas suspeitas: estava um bagaço. O cabelo levemente arruivado parecia haver pensado ser uma boa idéia dar uma festa durante a noite e convidar todos os fios para dançarem na mesma pista de música eletrônica. Lavando o rosto, Artur Dente desconfiou que sua baba também tivesse sido convidada para a festa.

Após considerar a hipótese de tomar um banho, Artur Dente lembrou-se de que era domingo e, como é sabido em todas as galáxias conhecidas, domingo é o dia oficial em que nada acontece e, portanto, não havia razão alguma para tomar um banho. Enxugou o rosto na toalha mais próxima e saiu do banheiro.

A dorzinha chata do lado esquerdo da cabeça continuava. Era a última vez, pensou, que sairia com aquele ator maluco que só o arrastava para lugares cheios de bebidas com alto ou altíssimo teor alcoólico. Seu organismo não fora criado para aquilo, pensava. Tudo o que Artur Dente mais queria naquele momento era uma boa xícara de chá.

Remexendo a terceira gaveta debaixo da pia da cozinha em busca de uma aspirina, um remédio para ressaca ou um vidro de veneno de rato - o que encontrasse primeiro -, Artur Dente pôs a água do chá para ferver.

De dentro do quarto veio uma voz estridente e manhosa. Sem conseguir encontrar a maldita aspirina, Artur Dente praguejou enquanto fechava a gaveta e abria a geladeira. Apenas um pote velho de manteiga, uma caixa de leite e uma bandeja quase inteira de iogurte passado da validade que Artur Dente comprara em um daqueles momentos em que decidia mudar de vida e começar a ter hábitos saudáveis. Pegou a caixa de leite e fechou a geladeira.

"Aqui, Marvin. Seu café da manhã.", disse Artur Dente. De dentro do quarto veio novamente a voz estridente e manhosa. Em poucos segundos, Marvin, o gato, saía do quarto e cheirava seu pote cheio de leite, pensando há quantos dias aquela caixa estaria aberta. 

A chaleira apitou no fogão, avisando que a água fervera. Artur Dente colocou um daqueles saquinhos dentro de uma xícara e serviu a água quente em cima. Agora só precisaria esperar alguns minutos enquanto fazia de conta que lia o jornal roubado do gramado do vizinho no dia anterior.

Antes que o chá pudesse ficar pronto, no entanto, a Terra foi destruída pelos Vogons para a construção de uma via espacial e Artur Dente não teve tempo de provar um dos 42 deliciosos sabores de chá que sua tia havia trazido de sua última viagem para a Inglaterra.